domingo, 10 de junho de 2012

a_cerca da memória !

Vou fazer uma picaretagem descarada aqui! Descarada e anunciada. Vou mesmo. Estou já avisando e explicando tudo para evitar más interpretações. Como eu sou do tipo de pessoa que esquece tudo... E esse tudo à que me refiro é muito mais do que se possa imaginar! Por ser assim, aprendi a ser organizada em certos aspectos práticos, principalmente nos estudos. Anotar tudo. Rever sempre. Não ter vergonha nenhuma em dizer que me esqueci e consultar... Enfim. Normal. Acho que muita gente é assim. Acho até que foi o meu esquecimento e a minha vontade de lembrar que fizeram de mim uma, entre outra coisas, historiadora.

Mas também, mesmo que esquecida, carrego minhas marcas. algo que permanece, questões com as quais nos deparamos um dia e que ficam de algum jeito sempre ali emboladas na gente. O que penetra, mesmo que vá direto para um espaço não-racional ou que não se amolde bem no geral cognitivo, fica ali sim, marcado de um jeito ou de outro. E, aliás, se é justamente disso que se trata: de memória. Do que lembramos e do que esquecemos

Então, eu estava enrolando um tempão pra discutir essa coisa da memória, acho um tema relevante. Claro! Relevantíssimo. Mas é 'pesadão'. Muita coisa pra eu dar conta. Talvez por isso tenha acontecido essa demora. Quase uma certa falta de coragem. Então eu me esforcei por motivos diversos e com intensidade desmedida nas semanas passada entre textos que tocavam também nesse assunto. Comecei a escrever esse texto aqui. Ainda não sei se ajudou ou só embolou mais um pouco... Mas tenho certeza de que a ferida ficou exposta, igual quando a gente arranca casquinha de cicatriz. Quando criei coragem e pensei assim: vou mandar provocações. As misturebas da minha cabeça. Vou arriscar uma metáfora, pois que entre as coisas que eu mais adoro na vida estão as metáforas! Arriscar uma metáfora e tentar construir essas reflexões, reflexos de/para provocações a partir da concretude de uma obra e da transgressão da significação natural das palavras, oxalá também das ideias.

A imagem a seguir é uma litografia de Marc Chagall, de 1963. The Wandering Musicians ou...
les musician vagabons, los músicos ambulantes (não sei se esse é o título em espanhol, é uma tradução livre) ou, enfim: músicos mambembes.


Sobre a imagem, observações subjetivas: são músicos e são mambembes. São três músicos palhaços, saltimbancos. A música marca muitas lembranças. Eu mesma lembro muito de melodias e letras de canções! Isso eu lembro, apesar de me esquecer de tanta coisa. São três músicos, veja só. O primeiro, me parece ser um percussionista e me remete ao momento acontecido, o fato passado, uma batida que marca. O segundo, violinista, poderia representar as voltas do pensamento, os processos internos entre o acontecido passado e o que se sucede até o momento presente. E o terceiro, com um instrumento de sopro, seria a narração acontecendo. Seria aquele fato percutido sendo contado, expressado. Uma repercussão assoprada. Está aqui meu arranjo metafórico para explicar que, no momento em que se escuta realiza a entrevista os três músicos estão presentes. E o violinista, ali no meio da história toda e no meio da nossa imagem com tamanho, contraste e destaque maiores tem mesmo esse peso. Mas uma contação só acontece com os três. E para ouvi-la atentamente há que se levar em conta essa operação. Assim se escuta a música da narração.

Sobre a técnica e as operações da memória: a litografia é produzida como um carimbo artesanal, assim, diferentemente da xilogravura por exemplo em que se escava um 'negativo' na madeira para então se imprimir o resultado que 'sobrou' em relevo, na litografia  se vai juntando os traços com uma resíduo meio gordurento, vai construindo o desenho no 'positivo' mesmo. Imagino que exista sim alguma forma de tirar também esse resíduo para limpar a base, mas é interessante pensar na construção da imagem, assim como a da nossa memória, como um acúmulo de informações. Só que, por ser como um carimbo, cada vez que se vai reproduzir essa imagem, dependendo da sua força e da pressão aplicadas, da tinta, do suporte enfim, de toda a situação, variações nos traços e no resultado final inevitavelmente acontecem. Exatamente como ocorre cada vez que lembramos, contamos ou recontamos um fato ocorrido, nunca vai ser lembrado igualzinho. Entre todo o acúmulo de informações que temos, pequenos detalhes escapam, podem se confundir os traços da memória, jamais será contado com as mesmas palavras e muito menos interpretado da mesma forma, posto que se imagina que alguém vá contar a história novamente para um interlocutor diferente. É claro que, mudando o suporte que recebe a impressão, o desenho parece o mesmo, mas o conjunto é outro! Mesmo que seja para o mesmo interlocutor. Mudando a situação, a história é a mesma mas algo se modifica. Mudando a iluminação, a obra é a mesma mas a percepção se altera. E, ouvir uma repetição é como quando se aprecia pela segunda vez uma imagem, certamente vai notar outros detalhes.

Creio que isso não signifique que seja necessário duvidar ferrenhamente de tudo. Mas duvidar um pouco sim. Sempre. Não necessariamente desacreditando, mas testando, criticando, observando pormenores psicológicos que falam para além do dito. Pois, no caso da nossa incrível e poderosa mente humana, além do fato de aglomerarmos muita informação e estarmos sempre reorganizando esses traços todos de algum jeito que eu não sei bem como explicar cientificamente e nem sei se alguém sabe... Além disso, nós imaginamos, sonhamos, inventamos, desejamos. As vezes podemos incorporar verdades que não foram nossas ou mentir tantas vezes que nós próprios podemos nos confundir entre o que é real e o que é ajustado pela memória. E, se fosse possível (ou quando é! por que não? é...) perceber como se dão e como se mostram esses desajustes e reajustes esta deve ser uma informação a mais para a interpretação de uma narração. Ao invés de ser uma 'perda', assim "ah, vamos invalidar isso, é mentira" bem, é possível pensar em "olha aqui essa mentira, isso está meio deslocado... porque será que está assim?". E esse pensamento pode nos levar para novas conclusões. Ou não.

Muito, muito mais pode ser dito sobre o assunto. Infindas elucubrações e sutilezas interessantíssimas para o estudo da história com depoimentos como fonte. Também para a psicologia, psiquiatria, neurologia e outras áreas que tratam do que acontece diretamente dentro do nosso cérebro, ou de como nos relacionamos, para cuidar do jogo entre o mundo interno e o mundo externo. Olha, é bem legal mesmo esse tema. Mais legal ainda é pegar o material e esmiuçá-lo pensando nessas questões. É um trabalho riquíssimo. E a coisa rende, viu? Gracias à Maurice Halbwachs, que inspirou bastante disso aqui. Nossa, mas ele trata de muito mais. Recomendável ler A memória coletiva dele. Fico por aqui. Esperando pelos ecos dos meus pensamentos virtualmente expressos.

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