Eu fico falando em entrevistas pra lá, entrevistas pra cá. Menciono o tanto que dá de trabalho lidar com as entrevistas e tudo mais, mas... O que será que alguém que nunca ouviu falar de História Oral vai imaginar lendo essas informações todas?
Primeiramente, é interessante darmos uma leve passada em algumas idéias que permeiam a História Oral. HO é diferente de 'oralidade' e é diferente de 'fontes orais' ou 'registros'. Imagino que quando as pessoas leem oque eu escrevo sobre as entrevistas elas devam pensar simplesmente que em um certo momento em sentei ali com alguém e gravei uma conversa e depois, sozinha, fiquei ouvindo a conversa e pondo tudo 'no papel'. A grosso modo. É quase isso. Mas é muito mais!
Existe um preparo antes da entrevista, bastante diferente do que se tem para uma abordagem jornalística por exemplo... E, eu, nas primeiras entrevistas, tinha planos e objetivos para a pesquisa, tinha perguntas pré-estabelecidas que não eram 'fechadas' e ainda assim tentei deixar o outro falar livremente. Mas eu não tinha tanta experiência... Tive vários tropeços, aprendi. Tantos em questões práticas, como lidar com o gravador, quanto em outras mais sutis, como em interrupções das quais me arrependi... ou, escolhas de local para a entrevista que não foram tão boas. Porque isso influencia muito!
Depois vem essa parte da transcrição. Um trabalho homérico para digitar tudo e um trabalho também grande, mas mais gostoso do que braçal, para fazer com que o transcrito tenha sentido de fato. Oras... porque momento é momento, áudio é áudio e texto é texto. Não existe cabimento em imaginar que se deva tratar tudo como o mesmo. Isso sem começar a pensar em como os textos das entrevistas viram um conjunto, como serão apresentados... Enfim.
Mas, uma das coisas que mais me encanta atualmente em HO é essa ideia de peculiaridade de cada suporte e do trabalho sensível, cuidadoso, de tentar fazer com que a intenção do discurso seja a mesma depois de transposta de um momento de verbalização da memória, um momento muito específico que é a entrevista, para um suporte em áudio ou audiovisual e então para o texto escrito. É muito óbvio que a diferença dos suportes muda drasticamente a percepção de quem receberá a mensagem. Ver, ouvir e ler... É muito diferente, não é mesmo? Por isso o processo de transcrição e as etapas de textualização e transcriação, ao meu ver, são quase uma trabalho artesanal desses em que você pega um conteúdo e coloca em outro molde e depois tem que lapidar. Lapidar palavras, pontuações, entonações para que tenham o mesmo espírito da coisa, ou o mais parecido possível, em cada uma das diferentes formas do registro.
Certo. Uma explicação rápida, só para deixar bem claro o que é o que!
Transcrição é a primeira etapa. Com pouca interferência, digitar todo o texto falado. Literalmente a entrevista toda. Separando cada uma das vozes, do pesquisador e do(s) colaboradore(s). Fica um texto grande, geralmente bem complicado de ler, cheio de marcas orais que se estranham no papel. Bem, não deixa de ser um primeiro 'documento'.
Textualização seria um primeiro tratamento desse texto, a adaptação necessária para uma leitura mais fluída. Como o termo indica, você vai textualizar um registro oral, ou seja, dar um sentido para ele num outro formato. Assim, por exemplo: tirando marcas orais que atrapalham a leitura, omitindo informações repetidas, reorganizando o discurso de forma a adaptá-lo à uma estrutura mais adequada que o texto escrito exige, omitindo a voz do pesquisador ou assimilando, incorporando assim, comentários seus relevantes ao texto de uma forma mais agradável de se ler do que no modelo de texto de 'entrevistador/entrevistado', etc. Nesse processo busca-se deixar o texto com um jeitão de narrativa, para que seja lida com mais facilidade e interesse. É como uma limpeza e organização do texto. Super necessária. As vezes é bom lembrar também das anotações feitas em campo e de outros elementos da entrevista, gestos, o que aconteceu durante o silêncio, que outras interferências influenciaram. Tudo isso é relevante.
Transcriação já é um pouco além disso. É, digamos, para os pesquisadores mais 'corajosos' ou 'atrevidos'. Aqui tem que se arriscar num campo quase poético, literário. E, sem medo de mudar o sentido da história contada, ao contrário, vai buscá-lo em sua essência e por isso se permite alterar palavras, tirar e incluir conteúdo, traduzir intenções subjetivas do colaborador... Uma coisa mais por aí...
E isso tudo é feito pelo pesquisador. Claro que esse pesquisador busca preservar a intenção do discurso, as flexões da voz, os tons de cada ocasião vivida na entrevista. Se for bem longe nisso, é realmente um trabalho muito específico no campo da literatura também. Sim. Porque é nesses detalhes da expressão que muito se diz, sem nada dizer. Daí a importância, a exigência ética, de se encontrar com o colaborador que concedeu a entrevista para que ele próprio leia, releia, verifique se ele percebe seu discurso ali, se ele se identifica e se autoriza e dá a validade [de sua voz] ao texto final.
Esse trabalho é delicioso. Eu adoro. É bom ouvir as entrevistas e revisar os textos depois também é ótimo! Apesar de que é verdade que a primeira transcrição é bem cansativa e demorada.
A grande maioria das colocações feitas aqui foram absorvidas por mim num curso que fiz no
NEHO - Núcleo de Estudos de História Oral lá na
USP no final do ano passado. Você pode conhecer mais
sobre o NEHO e sobre
HO no sítio do próprio núcleo. Existem outros centros de referência com trabalhos desse tipo como o
CMU - Centro de Memória da Unicamp e o Museu da Pessoa, cujas metodologias talvez tenham algumas diferenças. Mas creio que, em essência, o trabalho carrega muito da mesma labuta.
Só tem mais alguns poréns aí. Até agora eu falei pensando no que se define na História Oral, principalmente na aplicada pelo NEHO. Mas não me considero uma 'fiel' seguidora desses preceitos. Principalmente porque, quando fiz as entrevistas, apesar de já ter lido o Manual de História Oral do J.C. Sebe, eu acho que olhava sim, um pouco, para o momento da entrevista como quem procura gerar um material que fosse objeto de pesquisa, não uma 'voz' principalmente. Falta de experiência? Pouco conhecimento da área?Pensava a memória de quem narrava bastante descolada da ideia de história, com muitos questionamentos. E, sinceramente acho que ainda penso. Me importo tanto com a análise quanto com a utilização das 'vozes'. Acho que uma reflexão a respeito do assunto e dos contados é necessária e é parte integrante do meu projeto. E, também, hoje ainda vejo as entrevistas com as duas finalidades: a da voz do colaborador como ator da história viva, cujo trabalho textual para transmitir tanto prezo, e como objeto de reflexão para análise de outros conceitos, em diversos campos de conhecimento. Bem, a HO pressupõe mesmo uma interdisciplinariedade... Mesmo assim, mesmo já tendo estudado mais e estando trabalhando e pensando muito em tudo isso, ainda assim, me pergunto, por exemplo, se em certos casos não seria útil ao pesquisador ter acesso tanto ao texto final (textualizado ou transcriado) quanto à transcrição original. Isso pensando numa amplificação do trabalho. Pensando em fazer com que o meu trabalho possa ser potencializado por outros! Desde que tendo claro suas balizas e considerando e respeitando a origem e finalidades primeiras dos depoimentos, claro.
No projeto enviado à Funarte, faço referência à documentação de fontes orais e à formação de um banco de dados. Esclareço que aqui que usaremos, da maneira mais adequada possível, a 'metodologia' da HO. Mas confesso até nem ter muita certeza se meu trabalho é, como eles definem, híbrido - posto que considero o uso de outras fontes físicas (textos, matérias jornalísticas, iconografia) ou se é um trabalho temático, pois tem um assunto específico que permeia e delineia o todo. Acho que a HO é fenomenal no meu caso. Essa forma de lidar com a oralidade é muito adequada e muito boa mesmo. É quase um disparate o que eu vou dizer, porque o trabalho com HO não pode ser visto como um 'só isso' nunca! É um trampo de muita responsabilidade e que eu admiro. Que eu busquei, me identifico e procuro compreender mais. Enxergo como uma forma específica de produção de conhecimento, sei que é apesar de 'jovem' a HO tem uma trajetória de desenvolvimento respeitável... Mas, não encontro forma melhor de expressar minhas inquietações sobre onde eu me enquadro nisso tudo a não ser dizendo que: eu acho que é muito disso, mas não é só isso...
Fato é que estou me guiando, principalmente na relação com as entrevistas, pelos nortes da HO, sim. Mas acho que tudo isso talvez ainda esteja em função de desejos de mais! E um algo mais ainda indefinido. Desejos, inclusive, colocados nesse projeto enviado à Funarte, de que o trabalho que terminará uma etapa em agosto - com as entrevistas e documentação organizadas, e um texto sobre a escola, etc. seja um fim em si de todo um processo iniciado lá em 2002 e seja um início para mais estudos sobre o tema.